terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

CLARIARCE, por Alexandre Mendes

CLARIARCE
por Alexandre Mendes*
Orientação: Profa. Marina Elias

Uma rosa viva. Pendurada. Trechos. Textos. As palavras coreografadas. Tempo. “Eu tenho de confessar uma coisa...” (...) “Me fotografa? Assim mesmo, na horizontal”. E assim começa Clariarce, um solo de Jussara Miller com direção de Norberto Presta, no teatro Cacilda Becker. 

Ser o instante é o que interessa. Não se pára para pensar o instante. Ele é o pensamento. É o que está “atrás do pensamento”. Os momentos a todo o momento sendo tecidos pelos textos grafados, áudios-visuais e coreográficos. Com os olhos certeiros, tranqüilos e ar de poeta longe de qualquer atitude representacional, Jussara lançava o texto desconstruído e fazia dele movimento: ”Tempo. Contar o tempo é uma hipótese de trabalho” (...) “Tempo, tempo, tempo...“ e as palavras dançavam para nós, espectadores. Entre texto e caminhar, se construía ali a dramaturgia que nasceu na intérprete-criadora. Água Viva é como todo bom texto uma dança das palavras sem contratempos estéticos e com fluidez ininterrupta. Entende-se por fluidez, energia sem corte. E é isso que faz a intérprete potencializar-se em cena, estabelecendodignamente um diálogo denso com Clarice.

Podemos dividir este espetáculo intimista, que traz em sua essência o mote morte/vida, em dois momentos. O primeiro, mostra sua rosa vivaz num pêndulo iniciado ao ser puxado para traz. O segundo traz à cena a rosa murcha, mas nem por isso menos corpo, que no tempo também se prontifica amarrando um processo condicionado a qualquer ser vivente. 
 
O pendular da rosa vivaz e de pétalas largas é acompanhado pelo sensível passo da bailarina, que ocupa o espaço bem definido e direcionado. As evoluções do corpo que vai ao chão e retorna numa espiral, traz a imagem da vida de uma forma muito simples. O ser em espiral que está em processo de morte/vida neste contínuo movimento. A dança ganha o status da literatura de Clarisse: sem pressa de se esgotar e tão imersa em si que não pode e nem se permite impedir a liberdade de dançar o que lhe der vontade. A essa vontade entrega palavras que se dão em bolas de gude. Moldam o chão e o fazem deslizar em direção às cadeiras do público graças a uma luz de discreta intensidade e leve densidade. As palavras de Clarice não pretendem coisa alguma a não ser exprimir o instante. Os movimentos de Jussara Miller nãopretendem coisa alguma a não ser exprimir o seu instante. E logo, é essa interseção o que revela a sutil e aguda profundidade com que as simples e, por isso, derradeiras palavras de Clarice nos atingem. É um respeito percebido no romance que se faz assim também na criação da dramaturgia.

O pendular da rosa murcha. Morta. Seca. Mas ainda numa secura recente, pois mostra que a vida acabara de te deixar. A secura lhe toma. Potência artística. Inspira. Os vetores de movimento de Jussara encontraram
um tom de morte sob o degelo do bloco sobre a bacia. A seqüência com seus acentos contráteis e impulsos contidos enrijeciam o corpo dava aos movimentos uma aparência de dor sob a gota gelada. Pasmam-se e contraem-se pés, mãos e cabeça. O semblante levemente se contrai. Ganha rugas e gravidade. E mais uma vez sem pretensão alguma, é que Jussara está rosa e murcha sob as pétalas congeladas que pingam os instantes que se esvaem antes de serem apreendidos; como corpo morto sob a terra que dele se fertiliza.

Respeito ”Ouviu?” “Água Viva” é um apelo à vivência do instante. O instante-já1. E é a ele que Clariarce se dedica. E é a ele que Jussara Miller se dirige. As fotos tiradas pelo público a pedido da bailarina e projetadas durante o espetáculo colocam em voga que o tempo é somente uma questão de percepção. Seja como ilusão ou como vivência, como o dito pelo diretor Norberto Presta, a percepção e as sensações são as matérias matrizes da poesia dançada. “Ouviu Deus?” A interação com o público foi mais uma demonstração de que o improviso não somente demonstra de que se é sincero sob expectativa adversa, como mais uma vez prova que é a centelha de Eros em estado de graça quem comanda os passos seguintes. “Estou improvisando e a beleza do que improviso é fuga”. Existir é um constante improviso. Assim como as palavras de Clarice que correm vertiginosas e ocupadas somente com o passo seguinte.

A direção e cenografia de Norberto Presta buscam aumentar a potência criativa da concepção e interpretação de Jussara Miller. Para gerir um material livremente inspirado no universo de “Água Viva” foi necessário perspicácia e respeito à liberdade da intérprete-criadora, concebendo-lhe um espaço cênico mínimo que não interferisse arbitrariamente no que eclodiu durante a criação. Delicadeza primordial para não se perder a beleza íntima refletida no processo dramatúrgico-coreográfico. Uma boa parceria. 

O figurino de Silvana Nascimento dialoga muito bem com a proposta coreográfico-dramtúrgica. Foi pensado para cada etapa do processo sem abster-se do propósito da cena e da liberdade da bailarina. Desenha os movimentos no espaço com suavidade e leveza. Veste o corpo não com o fim a um significado, mas a uma pele. Ser rosa não como rosa, mas a essênciada rosa, no sentido heideggeriano da palavra. Não se ilustra, propicia-se uma vivência que se dará em conjunto à interpretação. 
 
O desenho de luz de Cristiano Pedott cria um espaço propício para fazer com que a poesia do movimento se desse perante os olhos do público, ora num espaço físico íntimo que iluminava o pequeno livro de queixa a Deus, ora num espaço interno onde somente o corpo atinge o vocábulo a transmitir as sensações ocorridas àqueles nervos, a intensidade luminosa e as cores elucidavam o que se revelava na interpretação.

Um espetáculo que desde o início não pretendeu ser mais do que deveria ser, Clariarce apresenta-se como um solo de dança que teatraliza no melhor sentido do termo o que o diálogo com a “Água Viva” nos traz: o diálogo consigo mesmo. O teatro torna-se movimento dançado. O solo de Jussara tem a importância da junção destas duas artes como a gestação de uma terceira via de encenação contemporânea. Uma renovação do acontecer da poesia em cena.

*Alexandre Mendes é aluno do curso de Bacharelado em Dança da UFRJ.

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