quarta-feira, 17 de novembro de 2010

O PREDILETO DOS LEPIDÓPTEROS, por Camila Honorio

 O PREDILETO DOS LEPIDÓPTEROS
por Camila Honorio*
Orientação: Profa. Dra. Lígia Tourinho
 
O Predileto dos Lepidópteros é sem dúvida um espetáculo que atinge a alma e traz questões ao espectador. Trata da história de um revolucionário russo, um dos principais teóricos do Partido Comunista, definido por Lênin como o predileto do Partido, Nicolai Bujarin. A trama, no entanto não se resume a política, abordando também o amor deste homem por sua esposa Anna e por borboletas. Um fato norteador dessa pesquisa foi a carta escrita por ele antes de ser assassinado, no regime de Stalin, para Anna, que só a recebeu 55 anos mais tarde podendo enfim responder ao seu marido assassinado.
            Norberto Presta constrói o personagem de forma minuciosa, a partir da pesquisa de movimento da lagarta, deixando clara essa proposta durante todo o espetáculo. Mantém o corpo “fechado”, em seu espaço interno, como se estivesse envolto por alguma estrutura menor que a sua cinesfera, sustenta os joelhos flexionados, caminhando com peso a favor da gravidade e utilizando muito as torções. A impressão é que a qualquer momento ele escapará dessa estrutura para tornar-se livre. Quando durante o texto fala que a borboleta tem uma vida breve, mas consegue se libertar da sua antiga pele, enquanto o homem passa a vida sem libertar-se da sua, evidencia a proposta de sua movimentação como construção do personagem.
Durante o espetáculo o personagem Nicolai Bujarin dialoga com o próprio Norberto, diferenciando o personagem de si mesmo pela movimentação de seu corpo. Neste momento o que mais impressiona é a passagem de um personagem para o outro. A movimentação de transição é rápida, precisa e imperceptível, sendo possível distinguir ator e personagem apenas quando já se deu a transição, tornando ainda mais admirável o trabalho de pesquisa do ator. O espetáculo torna-se fascinante à medida que o ator não limita a sua interpretação à enunciação do texto e a expressão facial, utilizando o corpo como elemento expressivo tanto ou mais potente que a própria fala e a expressão facial.
O figurino simples, composto por um terno, também faz alusão à lagarta. Quando no início do espetáculo o ator coloca o paletó conduzindo a movimentação sinuosamente, traz uma sensação mais fechada imprimindo a imagem da lagarta envolta em sua pele espessa e dura. Quando, porém, ele retira o paletó com o mesmo tipo de movimentação que o colocou e arranca os cadarços do sapato, sem quebrar a continuidade do personagem e da fala, a idéia que se tem é de uma lagarta que de desfaz da pele e transforma-se em lepidóptero, apesar de permanecer durante o espetáculo com a movimentação mais fechada.
Muitos espetáculos contemporâneos, seja de dança ou teatro, utilizam a troca de figurino no palco como construção da cena, porém, costumeiramente interrompem a linha de movimentação corporal construída até o momento para fazer a troca do figurino, deixando escapar por um breve momento o personagem evidenciando mais o próprio intérprete. Norberto, no entanto, constrói brilhantemente a mudança do figurino de forma a mantê-lo realmente incluído continuamente na cena, não havendo quebra, interrupção.
O cenário e os elementos de apoio são tão simples quanto o figurino, mas muito bem explorados e ricos em suas significações. Uma cadeira que utilizada em diferentes posições representava inúmeros objetos ou espaços, sendo ora apenas cadeira, ora palanque do Partido Comunista Russo etc. A cadeira era também uma extensão do corpo do ator que a manipula sem que haja uma separação entre seu corpo e o objeto, este acompanha, completa os movimentos do ator, integrando-se, moldando-se, formando um único corpo a pessoa e a cadeira. Dessa forma a diferença entre cadeira e palanque só pode ser observada pelo contexto da cena, pela fala do personagem e pela movimentação do seu corpo durante a cena, descartando a possibilidade de distinção durante a transição da posição da cadeira entre uma cena e outra.
            Norberto utiliza três fotos em cena: a de Nicolai Bujarin, de Anna (esposa) e de Yuri (filho), com elas ele apresenta os três personagens ao público pedindo para que as fotos circulem, no final um dos espectadores fica com a foto de Anna e outro com a foto de Yuri mostrando-as para Norberto (Nicolai), quando solicitado, para que este encene com as fotos como se fossem vidas presentes no palco. A utilização das fotos de Anna (esposa), Yuri (filho) e do próprio Nicolai permitem uma interação com o público, onde o espectador que segura a foto de Anna ou de Yuri torna-se também atuante e constrói a cena juntamente com Norberto, criando uma aproximação maior do público com a história.
            Num determinado momento do espetáculo Norberto cantarola com uma folha vermelha nas mãos e uma tesoura na outra, recortando borboletas. As borboletas cortadas em um papel vermelho trazem a simbologia visual da liberdade desse inseto, além de representar pela cor a Revolução e o Partido Comunista Russo, tratados no espetáculo. Estas borboletas são entregues a algumas pessoas da platéia e uma é colada na cortina preta – cenário de fundo – intensificando a mensagem transmitida no espetáculo e mais uma vez provocando uma maior interação e aproximação com o espectador.
            Todos os momentos de interação com o público: conversa com o espectador, passagem das fotos pela platéia, a dança com Anna – uma mulher da platéia e a entrega das borboletas impedem o espectador de mergulhar nas emoções do espetáculo como se fossem “reais”, aproximando-o do artista e da sua obra que fica passível de alterações, pois cada espetáculo comporta um público diferente com diferentes reações as interações propostas, e permite ao espectador uma maior atenção às questões provocadas pela obra, que serão únicas para cada um.   
O Predileto dos Lepidópteros, que faz parte da Ocupação do Teatro Cacilda Becker no Projeto O corpo entre a dança e o teatro, atende bem a esse tema. Pela disponibilidade do corpo do ator e sua utilização deste potencial em cena, é difícil dizer que tal obra trata-se apenas de teatro ou de dança. Ambas se mesclam em todos os momentos do resultado dessa pesquisa trazendo uma reflexão inevitável: se ambas as artes utilizam o corpo como seu suporte, elas são separáveis ou simbióticas?

*Camila Honório é aluna do curso de Bacharelado em Dança da UFRJ.

4 comentários:

  1. Deve ser interessante a troca de figurino sem quebra do espetáculo. Muito bom.

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  2. Amiga, Adorei o texto!!!
    Muito feliz por vc!!!
    Em pensar que eu pude ler em primeira mão...quando vc for famosa ja vou ter seu autógrafo..rsrsr
    Bjocas Cíntia

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  3. adorei como abordou as questões trazidas no espetáculo de forma muito clara ! parabéns...

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