O PREDILETO DOS LEPIDÓPTEROS
por Camila Honorio*
Orientação: Profa. Dra. Lígia Tourinho
O Predileto dos Lepidópteros é sem dúvida um espetáculo que atinge a alma e traz questões ao espectador. Trata da história de um revolucionário russo, um dos principais teóricos do Partido Comunista, definido por Lênin como o predileto do Partido, Nicolai Bujarin. A trama, no entanto não se resume a política, abordando também o amor deste homem por sua esposa Anna e por borboletas. Um fato norteador dessa pesquisa foi a carta escrita por ele antes de ser assassinado, no regime de Stalin, para Anna, que só a recebeu 55 anos mais tarde podendo enfim responder ao seu marido assassinado.
Norberto Presta constrói o personagem de forma minuciosa, a partir da pesquisa de movimento da lagarta, deixando clara essa proposta durante todo o espetáculo. Mantém o corpo “fechado”, em seu espaço interno, como se estivesse envolto por alguma estrutura menor que a sua cinesfera, sustenta os joelhos flexionados, caminhando com peso a favor da gravidade e utilizando muito as torções. A impressão é que a qualquer momento ele escapará dessa estrutura para tornar-se livre. Quando durante o texto fala que a borboleta tem uma vida breve, mas consegue se libertar da sua antiga pele, enquanto o homem passa a vida sem libertar-se da sua, evidencia a proposta de sua movimentação como construção do personagem.
Durante o espetáculo o personagem Nicolai Bujarin dialoga com o próprio Norberto, diferenciando o personagem de si mesmo pela movimentação de seu corpo. Neste momento o que mais impressiona é a passagem de um personagem para o outro. A movimentação de transição é rápida, precisa e imperceptível, sendo possível distinguir ator e personagem apenas quando já se deu a transição, tornando ainda mais admirável o trabalho de pesquisa do ator. O espetáculo torna-se fascinante à medida que o ator não limita a sua interpretação à enunciação do texto e a expressão facial, utilizando o corpo como elemento expressivo tanto ou mais potente que a própria fala e a expressão facial.
O figurino simples, composto por um terno, também faz alusão à lagarta. Quando no início do espetáculo o ator coloca o paletó conduzindo a movimentação sinuosamente, traz uma sensação mais fechada imprimindo a imagem da lagarta envolta em sua pele espessa e dura. Quando, porém, ele retira o paletó com o mesmo tipo de movimentação que o colocou e arranca os cadarços do sapato, sem quebrar a continuidade do personagem e da fala, a idéia que se tem é de uma lagarta que de desfaz da pele e transforma-se em lepidóptero, apesar de permanecer durante o espetáculo com a movimentação mais fechada.
Muitos espetáculos contemporâneos, seja de dança ou teatro, utilizam a troca de figurino no palco como construção da cena, porém, costumeiramente interrompem a linha de movimentação corporal construída até o momento para fazer a troca do figurino, deixando escapar por um breve momento o personagem evidenciando mais o próprio intérprete. Norberto, no entanto, constrói brilhantemente a mudança do figurino de forma a mantê-lo realmente incluído continuamente na cena, não havendo quebra, interrupção.
O cenário e os elementos de apoio são tão simples quanto o figurino, mas muito bem explorados e ricos em suas significações. Uma cadeira que utilizada em diferentes posições representava inúmeros objetos ou espaços, sendo ora apenas cadeira, ora palanque do Partido Comunista Russo etc. A cadeira era também uma extensão do corpo do ator que a manipula sem que haja uma separação entre seu corpo e o objeto, este acompanha, completa os movimentos do ator, integrando-se, moldando-se, formando um único corpo a pessoa e a cadeira. Dessa forma a diferença entre cadeira e palanque só pode ser observada pelo contexto da cena, pela fala do personagem e pela movimentação do seu corpo durante a cena, descartando a possibilidade de distinção durante a transição da posição da cadeira entre uma cena e outra.
Norberto utiliza três fotos em cena: a de Nicolai Bujarin, de Anna (esposa) e de Yuri (filho), com elas ele apresenta os três personagens ao público pedindo para que as fotos circulem, no final um dos espectadores fica com a foto de Anna e outro com a foto de Yuri mostrando-as para Norberto (Nicolai), quando solicitado, para que este encene com as fotos como se fossem vidas presentes no palco. A utilização das fotos de Anna (esposa), Yuri (filho) e do próprio Nicolai permitem uma interação com o público, onde o espectador que segura a foto de Anna ou de Yuri torna-se também atuante e constrói a cena juntamente com Norberto, criando uma aproximação maior do público com a história.
Num determinado momento do espetáculo Norberto cantarola com uma folha vermelha nas mãos e uma tesoura na outra, recortando borboletas. As borboletas cortadas em um papel vermelho trazem a simbologia visual da liberdade desse inseto, além de representar pela cor a Revolução e o Partido Comunista Russo, tratados no espetáculo. Estas borboletas são entregues a algumas pessoas da platéia e uma é colada na cortina preta – cenário de fundo – intensificando a mensagem transmitida no espetáculo e mais uma vez provocando uma maior interação e aproximação com o espectador.
Todos os momentos de interação com o público: conversa com o espectador, passagem das fotos pela platéia, a dança com Anna – uma mulher da platéia e a entrega das borboletas impedem o espectador de mergulhar nas emoções do espetáculo como se fossem “reais”, aproximando-o do artista e da sua obra que fica passível de alterações, pois cada espetáculo comporta um público diferente com diferentes reações as interações propostas, e permite ao espectador uma maior atenção às questões provocadas pela obra, que serão únicas para cada um.
O Predileto dos Lepidópteros, que faz parte da Ocupação do Teatro Cacilda Becker no Projeto O corpo entre a dança e o teatro, atende bem a esse tema. Pela disponibilidade do corpo do ator e sua utilização deste potencial em cena, é difícil dizer que tal obra trata-se apenas de teatro ou de dança. Ambas se mesclam em todos os momentos do resultado dessa pesquisa trazendo uma reflexão inevitável: se ambas as artes utilizam o corpo como seu suporte, elas são separáveis ou simbióticas?
*Camila Honório é aluna do curso de Bacharelado em Dança da UFRJ.
Deve ser interessante a troca de figurino sem quebra do espetáculo. Muito bom.
ResponderExcluirAmiga, Adorei o texto!!!
ResponderExcluirMuito feliz por vc!!!
Em pensar que eu pude ler em primeira mão...quando vc for famosa ja vou ter seu autógrafo..rsrsr
Bjocas Cíntia
Parabéns amiga...sucesso!
ResponderExcluirBjs
Dan
adorei como abordou as questões trazidas no espetáculo de forma muito clara ! parabéns...
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