segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

DESPAIXÃO, por Adriana Krause e Elizandra Souza

DESPAIXÃO
por Adriana Krause*
orientação: Profa. Ms. Marina Elias

Despaixão é, antes de qualquer coisa, um processo convidativo. De um modo sincero e especial, convida o espectador a conhecer os processos de criação utilizados nas pesquisas e rompe completamente os limites entre o palco e o público. O espetáculo trabalha com provocações a partir do livro Amor Líquido, de Zigmunt Bauman, e, a cada experimentação, a cada cena, traz questões ao espectador que permitem com que ele desenvolva pensamentos e sensações provenientes de suas experiências pessoais e de como cada um estabelece suas relações de afeto na sociedade.
O espetáculo em processo conta com dois “provocadores” e duas intérpretes, todos em cena. Na primeira parte, Lídia Laranjeira lança provocações de modo a estimular a corporeidade das criadoras-intérpretes Marina Elias e Lígia Tourinho. Enquanto Lígia movimenta-se no nível baixo, Marina explora o nível alto. Lídia incentiva, entre outras coisas, uma a se movimentar apenas a partir do estímulo da outra, e a conexão vai se estabelecendo de maneira minuciosa. O mais impressionante é que, para alcançá-la, não são utilizados contatos ou apoios intencionais. Se esses ocorrem, é apenas por consequência da movimentação e, através desse trabalho, Marina e Lígia alcançam uma conexão ao mesmo tempo invisível e claramente perceptível pelo público. A ligação existente entre elas é imprescindível para o estabelecimento da potência da obra.
Após esse aquecimento, Renato Ferracini, que também atua como provocador, explica para o público o processo de Mímeses Corpórea utilizado na criação de movimentações que resultam na cena final. E o que o espectador verá? O fruto de um trabalho de observação detalhada dos vetores que fazem com que as pessoas, imagens, objetos sejam do jeito que são e da aplicação dos mesmos em cada corpo. Assim, se alguém caminha com o corpo ereto e o peito estufado, por exemplo, percebem-se pelo menos dois vetores: um vertical e outro sagital. Quem simular este caminhar, buscará aplicá-los a seu corpo. O objetivo não é retratar perfeitamente aquilo que se vê nas coisas, como suas formas, mas sim ajustar esses vetores de acordo com as sensações e percepções singulares que cada pessoa obteve ao observá-los.
Renato então relata para a plateia que pediu que as atrizes/dançarinas levassem uma foto pessoal, uma imagem e um objeto para o ensaio. Esses serviram como estímulo para a criação de estruturas de movimentações, que foram chamadas de “nuvens”, nome traduz de maneira brilhante os movimentos, uma vez que as nuvens estão em constante mudança e que cada pessoa pode ter uma percepção diferente de uma mesma nuvem. Nesse momento, Marina Elias e Lígia Tourinho mostram seus materiais para o público e, assim como haviam trabalhado em seus processos de criação, demonstram como realizaram a Mímeses Corpórea a partir das imagens e objetos que haviam levado. Sempre a partir da provocação de Renato, elas representam por meio de movimentos contidos e, posteriormente, expandidos o modo como percebem suas nuvens. Em seguida, voltam aos movimentos mas os executam ininterruptamente, até que cada uma constrói uma sequência individual, que é colocada em diálogo com a sequência da outra. O círculo se fecha, pois tudo aquilo que Renato Ferracini havia exposto anteriormente sobre o processo da Mímeses Corpórea fica extremamente claro.
Após essa primeira parte em que o processo de criação do espetáculo é trazido dos bastidores para o palco pelos provocadores, pelas intérpretes e pelo diretor Norberto Presta, a cena resultante é exibida. Essa cena, acima de tudo, incita uma discussão extremamente bem elaborada tomando como ponto de partida temático as ideias levantadas no livro de Bauman. Não se trata de retratar, e muito menos de representar o livro, mas sim de promover questões a partir dele. Quantas vezes vemos o amor como tema, seja em filmes, peças de teatro e danças? Por não ser uma narrativa e muito menos linear, em que há um final feliz ou triste, em que o amor dá certo ou não, Despaixão consegue, de maneira original trazer novas indagações ao espectador sobre esse tema já tão explorado, e tirá-lo do clichê.
Ao longo da cena, são estabelecidas diferentes relações entre as intérpretes. Ora de indiferença de uma e sensualidade da outra, ora de raiva. Nesses momentos, não é possível categorizar a cena como dança ou como teatro apenas. A movimentação e as sensações que as intérpretes passam, muitas delas provenientes dos trabalhos feitos a partir da Mímeses Corpórea, sugerem uma dança muito potente que, acima de tudo, reforça a conexão entre Marina e Lígia. Suas atuações também são impecáveis e suas potências em cena atingem fortemente o público, de modo que esse sente que faz parte das relações estabelecidas entre elas.
Durante toda a encenação, há diversos momentos que impressionam, porém vale comentar o final. Em um determinado momento, as intérpretes recitam uma série de nomes, inclusive os delas, nomes que aparentemente fazem parte de suas relações de afeto. Marina interrompe a sequência com a seguinte frase: “eu acho que te...”, e prossegue: “eu vou dizer... eu acho que vou dizer... eu acho que te... vou dizer”. Enquanto isso, Lígia dirige-se à água que havia sido derrubada de um balde em outro momento por ela mesma. Lígia começa, então, a se entregar à água, numa clara alusão ao título do livro, Amor Líquido. Essa entrega faz com que pensemos que, apesar de todas as dificuldades e impasses existentes nas relações humanas, o homem ainda busca se entregar ao amor. A cena não termina aqui, mas mais não conto.
Tanto pela via da encenação como da dança, é importante que o que permaneça com o público não seja a obra pronta, acabada, sem nuances. Despaixão explora zonas movediças, incertezas e inquietações a partir das relações estabelecidas entre as artistas, no palco, e entre elas e a plateia. E o faz de duas maneiras: explicitamente, quando permite que o espectador conheça seus bastidores, o processo de criação, que faça perguntas e dialogue abertamente com os criadores, derrubando as barreiras entre palco e plateia; e implicitamente, quando essa interatividade se dá no campo sensorial e psicológico, possibilitando que cada espectador converse consigo mesmo e se aventure a discutir questões provenientes de suas vivências pessoais. É um espetáculo, sem dúvida, apaixonante.
*Adriana Krause é aluna do 2º. Período do Curso de Bacharelado em Dança da UFRJ.


DESPAIXÃO
Por Elizandra Silva de Souza*
Orientação: profa. Dra. lígia Tourinho

Uma obra de arte autêntica (…) permanece sempre
infinita para o nosso entendimento; ela é contemplada,
sentida, faz efeito, mas não pode ser propriamente
conhecida, muito menos podem ser expressos
em palavras sua essência, seu mérito.”
(Johann Wolfgang Goethe)

Despaixão é sensação. A sensação que age diretamente sobre o nosso sistema nervoso. Não querendo definir o trabalho em uma única palavra, mas sim pela presença de um conjunto de sensações que percorrem toda a obra. Despaixão é um Work In Progress, se encontra em um campo subjetivo e perceptivo, fazendo com que não haja uma lógica racional e fluxos de pensamentos. Sendo um trabalho em processo, parte de uma forma de criação e recepção que se dá diante dos espectadores. O trabalho teve como ponto de partida o livro Amor Líquido, do sociólogo Zygmunt Bauman. É dirigido pelo ator e dramaturgo, Noberto Presta. Com duas interpretes, Lígia Tourinho e Marina Elias. E “provocações” de Renato Ferracini e Lídia Laranjeira.  
 
Antes do roteiro experimental de Despaixão nos ser mostrado na íntegra, nos foi passada toda a demostração técnica do trabalho. Renato Ferracini explicou o que vem a ser a mímeses corpórea, que é uma forma de coleta de dados para recriar uma ação física ou vocal, e como isso pode ser aplicado à dança. Tudo o que nos era explicado, era depois exemplificado. O que permitia um maior entendimento. De forma alguma o fato de nos ter sido passado o processo, diminuiu a surpresa ou o encanto de assistir o roteiro mais tarde.
 
Despaixão proporciona ao público o que Ferracini chama de Zona de Turbulência. Uma zona de criação, de contaminação, onde o público está o tempo todo criando junto com os interpretes. Quando chega ao final, fica no ar todas as sensações, todos os questionamentos, todas as inquietações. E a mistura de tudo isso e algo mais, nos trás uma sensação estranha, porém boa e um desejo mais que ansioso de ver e sentir tudo outra vez.
 
*Elizandra Souza é aluna do curso de Licenciatura em Dança da UFRJ. 

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

O PREDILETO DOS LEPIDÓPTEROS, por Camila Honorio

 O PREDILETO DOS LEPIDÓPTEROS
por Camila Honorio*
Orientação: Profa. Dra. Lígia Tourinho
 
O Predileto dos Lepidópteros é sem dúvida um espetáculo que atinge a alma e traz questões ao espectador. Trata da história de um revolucionário russo, um dos principais teóricos do Partido Comunista, definido por Lênin como o predileto do Partido, Nicolai Bujarin. A trama, no entanto não se resume a política, abordando também o amor deste homem por sua esposa Anna e por borboletas. Um fato norteador dessa pesquisa foi a carta escrita por ele antes de ser assassinado, no regime de Stalin, para Anna, que só a recebeu 55 anos mais tarde podendo enfim responder ao seu marido assassinado.
            Norberto Presta constrói o personagem de forma minuciosa, a partir da pesquisa de movimento da lagarta, deixando clara essa proposta durante todo o espetáculo. Mantém o corpo “fechado”, em seu espaço interno, como se estivesse envolto por alguma estrutura menor que a sua cinesfera, sustenta os joelhos flexionados, caminhando com peso a favor da gravidade e utilizando muito as torções. A impressão é que a qualquer momento ele escapará dessa estrutura para tornar-se livre. Quando durante o texto fala que a borboleta tem uma vida breve, mas consegue se libertar da sua antiga pele, enquanto o homem passa a vida sem libertar-se da sua, evidencia a proposta de sua movimentação como construção do personagem.
Durante o espetáculo o personagem Nicolai Bujarin dialoga com o próprio Norberto, diferenciando o personagem de si mesmo pela movimentação de seu corpo. Neste momento o que mais impressiona é a passagem de um personagem para o outro. A movimentação de transição é rápida, precisa e imperceptível, sendo possível distinguir ator e personagem apenas quando já se deu a transição, tornando ainda mais admirável o trabalho de pesquisa do ator. O espetáculo torna-se fascinante à medida que o ator não limita a sua interpretação à enunciação do texto e a expressão facial, utilizando o corpo como elemento expressivo tanto ou mais potente que a própria fala e a expressão facial.
O figurino simples, composto por um terno, também faz alusão à lagarta. Quando no início do espetáculo o ator coloca o paletó conduzindo a movimentação sinuosamente, traz uma sensação mais fechada imprimindo a imagem da lagarta envolta em sua pele espessa e dura. Quando, porém, ele retira o paletó com o mesmo tipo de movimentação que o colocou e arranca os cadarços do sapato, sem quebrar a continuidade do personagem e da fala, a idéia que se tem é de uma lagarta que de desfaz da pele e transforma-se em lepidóptero, apesar de permanecer durante o espetáculo com a movimentação mais fechada.
Muitos espetáculos contemporâneos, seja de dança ou teatro, utilizam a troca de figurino no palco como construção da cena, porém, costumeiramente interrompem a linha de movimentação corporal construída até o momento para fazer a troca do figurino, deixando escapar por um breve momento o personagem evidenciando mais o próprio intérprete. Norberto, no entanto, constrói brilhantemente a mudança do figurino de forma a mantê-lo realmente incluído continuamente na cena, não havendo quebra, interrupção.
O cenário e os elementos de apoio são tão simples quanto o figurino, mas muito bem explorados e ricos em suas significações. Uma cadeira que utilizada em diferentes posições representava inúmeros objetos ou espaços, sendo ora apenas cadeira, ora palanque do Partido Comunista Russo etc. A cadeira era também uma extensão do corpo do ator que a manipula sem que haja uma separação entre seu corpo e o objeto, este acompanha, completa os movimentos do ator, integrando-se, moldando-se, formando um único corpo a pessoa e a cadeira. Dessa forma a diferença entre cadeira e palanque só pode ser observada pelo contexto da cena, pela fala do personagem e pela movimentação do seu corpo durante a cena, descartando a possibilidade de distinção durante a transição da posição da cadeira entre uma cena e outra.
            Norberto utiliza três fotos em cena: a de Nicolai Bujarin, de Anna (esposa) e de Yuri (filho), com elas ele apresenta os três personagens ao público pedindo para que as fotos circulem, no final um dos espectadores fica com a foto de Anna e outro com a foto de Yuri mostrando-as para Norberto (Nicolai), quando solicitado, para que este encene com as fotos como se fossem vidas presentes no palco. A utilização das fotos de Anna (esposa), Yuri (filho) e do próprio Nicolai permitem uma interação com o público, onde o espectador que segura a foto de Anna ou de Yuri torna-se também atuante e constrói a cena juntamente com Norberto, criando uma aproximação maior do público com a história.
            Num determinado momento do espetáculo Norberto cantarola com uma folha vermelha nas mãos e uma tesoura na outra, recortando borboletas. As borboletas cortadas em um papel vermelho trazem a simbologia visual da liberdade desse inseto, além de representar pela cor a Revolução e o Partido Comunista Russo, tratados no espetáculo. Estas borboletas são entregues a algumas pessoas da platéia e uma é colada na cortina preta – cenário de fundo – intensificando a mensagem transmitida no espetáculo e mais uma vez provocando uma maior interação e aproximação com o espectador.
            Todos os momentos de interação com o público: conversa com o espectador, passagem das fotos pela platéia, a dança com Anna – uma mulher da platéia e a entrega das borboletas impedem o espectador de mergulhar nas emoções do espetáculo como se fossem “reais”, aproximando-o do artista e da sua obra que fica passível de alterações, pois cada espetáculo comporta um público diferente com diferentes reações as interações propostas, e permite ao espectador uma maior atenção às questões provocadas pela obra, que serão únicas para cada um.   
O Predileto dos Lepidópteros, que faz parte da Ocupação do Teatro Cacilda Becker no Projeto O corpo entre a dança e o teatro, atende bem a esse tema. Pela disponibilidade do corpo do ator e sua utilização deste potencial em cena, é difícil dizer que tal obra trata-se apenas de teatro ou de dança. Ambas se mesclam em todos os momentos do resultado dessa pesquisa trazendo uma reflexão inevitável: se ambas as artes utilizam o corpo como seu suporte, elas são separáveis ou simbióticas?

*Camila Honório é aluna do curso de Bacharelado em Dança da UFRJ.